terça-feira, 19 de agosto de 2014

Alguns posicionamentos sobre o que disse a atriz Denise Fraga.....

Acesso: 19/08/2014 as 09:10h
 
Denise Fraga, eliminar a Química do currículo é mesmo a solução? Não seria precipitado?*
A atriz da Rede Globo de Televisão Denise Rodrigues Fraga Villaça escreveu um artigo na Folha de São Paulo reclamando do conteudismo escolar pegando a Química pra cristo (e sobrando até pra biologia): [cuidado, paywall poroso!] "Química, pra que te quero?".

Arrisquei-me a discutir algo similar (com conclusão virtualmente oposta), mas em um contexto de educação *informal*, não na escola. Não me sinto muito confortável discutindo políticas educacionais. Não tenho formação na área, não cursei a Escola de Teatro Martins Pena.

Assim, não irei discutir tanto sobre como a educação deve ser e o que deve ser ensinado, quanto apontar inconsistências nas críticas da atriz e convidar para um outro olhar.

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No primeiro parágrafo a atriz faz a provocação: "Que me perdoem os químicos, mas alguém poderia me dizer por que ainda se estuda química nas escolas?" Curiosamente, ela mesmo
a dá uma resposta logo em seguida: "É uma linda ciência e concordo que deveríamos ter ao menos um ano de estudo da matéria para entender a composição das coisas que juntas e inter-relacionadas compõem o Universo."

A bem dizer, a Física dos Elétrons de Valência - aka Química - trata só da matéria comum: átomos formados por um núcleo de prótons e nêutrons orbitados por elétrons ou na forma de plasma - que compõe menos de 5% do Universo (uns 70% são formados por energia escura e uns 25% por matéria escura). Mas no nosso dia a dia está ostensiva e fundamentalmente presente. Dá mesmo para abrir mão disso? Quando há campanhas contra aditivos químicos nos alimentos vamos confiar apenas no que nos dizem ou usaremos nossos instintos para saber quem tem ou não razão? E sobre o uso e controle de agrotóxicos? Medidas de combate à poluição atmosférica, das águas e do solo? A sua resposta é: "O acesso à informação anda no nosso bolso a um clique de nossos dedos e mesmo assim precisamos decorar os nomes do aparelho reprodutor dos platelmintos?/Podemos saber de tudo navegando por aí. Tanto pra aprender! E quem nos ensina a escolher o que queremos saber?". Bem, há mais de um aspecto que precisamos levar em conta:

1) Por enquanto, pouco mais de 100 milhões de pessoas têm acesso à internet. Cerca de metade dos brasileiros *não* tem acesso à informação "a um clique".
2) É preciso ter uma certa habilidade para pesquisar na internet: saber os termos para pesquisar e filtrar os resultados. Seria interessante que se ensinasse a nossos filhos nas escolas, ao menos assim me parece. Mas isso substitui as aulas de química e de biologia? Como pesquisar sobre aparelho reprodutor de platelmintos se você não sabe o que significa "aparelho reprodutor" e nem sabe que platelmintos existem? A pesquisa tende a se tornar ineficiente e há grandes os riscos de ir parar em uma página pouco confiável.
3) Talvez a maturidade a respeito da escolha do que queremos saber passe por ter um bom conhecimento básico e que seja amplamente partilhado. Algum aluno pode se interessar por saber mais como a pesquisa por melhores corantes de tecidos levou ao desenvolvimento da indústria da química fina, que, entre outras coisas, permitiu o desenvolvimento de novos medicamentos. Mas como ele iria saber que se interessa por isso sem nem saber sobre química? Como teremos alunos inclinados a serem químicos, bioquímicos, engenheiros químicos, petroquímicos, técnicos diversos (como aqueles essenciais que fazem testes de segurança de um sem número de compostos que você e todo mundo usa: de cosméticos a alimentos e medicamentos -?) sem que eles saibam o que é química?
4) Decorar o nome do aparelho reprodutor dos platelmintos - que, por acaso, tem o mesmo nome do nosso: "aparelho reprodutor" (sim, alguns órgãos têm nomes diferentes como o "poro genital"; outros, como "testículo", o mesmo) - é menos importante do que entender a diversidade de modos reprodutivos entre os seres vivos e como os padrões de similaridades e diferenças nos unem a todos. Sério, Denise Fraga, não faz sua cabeça explodir saber que somos relacionados por *parentesco* aos platelmintos? Saber que temos um ancestral em comum remoto com eles e outros ancestrais em comum - mais recentes ou mais antigos - com todos os demais seres vivos conhecidos até o momento? Saber que a despeito de tantas diferenças na aparência, platelmintos e nós, somos formados essencialmente do mesmo modo: a partir da fusão de células reprodutoras e posterior divisão celular e diferenciação das células resultantes?

Para a atriz, ensinar um jogo seria mais negócio: "Mas por que não optar por xadrez, por exemplo? Você já viu alguém jogar cadeias de carbono e hidrogênio com um amigo numa tarde chuvosa? Imagina que maravilha seria se todos nós fôssemos potenciais jogadores de xadrez formados pela escola?". Novamente, vários aspectos:

1) Há escolas que ensinam xadrez e outros jogos de tabuleiro e salão, além de práticas desportivas diversas (e até artes dramáticas). Mas não fazem isso *no lugar* da química. São atividades distintas, não concorrentes.
2) Imagina, então, se todos fôssemos pessoas que entendessem bem de química? Uma porção de dinheiro seria economizada fugindo-se de bobagens pseudocientíficas como homeopatia - com o bônus de melhora em nossa saúde. Não cometeríamos imprudências várias: como queimar a mão no gesso, ingerir metanol, cozinhar com ascarel, deixar de vacinar por causa do esqualeno, misturar água sanitária com amoníaco, provocar incêndio por largar pano com linhaça, etc., etc., etc.
3) Resistirei à tentação de maldar com a imagem de dois amigos lançando moléculas hidrocarbônicas um no outro (de compostos psicoativos a secreções biológicas); mas há vários jogos baseados na química - eu adorava os kits de químico mirim ou, em vez de decorar a tabela periódica, pode-se jogar com ela.

Provavelmente há necessidade na revisão da abordagem, já que nem você, nem seus filhos aprenderam adequadamente - não que eu saiba tudo o que se deva saber sobre química. Mas será que essa revisão é a simples eliminação da disciplina ou sua drástica redução a apenas um ano durante todos os 12 anos do ensino básico? Não poderia justamente ser uma melhora na ênfase da relevância do conhecimento químico? Da aproximação de tais conhecimentos com o nosso dia a dia? (Não são nenhuma abordagem revolucionária e estão presentes como parâmetros curriculares nacionais desde meados da década de 1990. Talvez o problema seja de sua efetiva implementação.)

*Uma das vantagens de ter uma cultura mínima em Química é entender a piada do título.

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