DISPONÍVEL: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/09/1813795-ministerio-da-educacao-apresenta-projeto-de-reforma-do-ensino-medio.shtml
http://www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br/movimento-nacional-em-defesa-do-ensino-medio-2/
ACESSO: 25/09/2016 as 20:50h
domingo, 25 de setembro de 2016
Pesquisa relaciona reflexões de Hannah Arendt sobre o ensino com conceitos de sua obra política: A CRIANÇA E O MUNDO
Conheci a filosofa Hanna Arendt em minhas aulas do doutorado. Desde então, me encantei pelas ideias da autora. Abaixo, segue uma reportagem sobre uma pesquisa publicada na Revista FAPESP.
DISPONÍVEL: http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/09/23/a-crianca-e-o-mundo/?cat=humanidades
ACESSO: 25/09/2016 as 20:44h
A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) escreveu apenas um ensaio
sobre educação em meio a uma obra eminentemente política. O texto,
intitulado “A crise na educação” (1958), publicado no Brasil em 1974 no
livro Entre o passado e o futuro, contesta as orientações de
ensino tidas como as mais avançadas à época por pedagogos e educadores
nos Estados Unidos, onde a pensadora vivia. Hannah Arendt ia
intencionalmente na contramão do que se pensava ao defender um sistema
educacional que não se voltasse acima de tudo para a prática, mas sim
para a tarefa de apresentar à criança um legado cultural de realizações
históricas. “A filósofa mostra que mudar métodos não resolve o problema
da educação se não houver uma discussão sobre sua própria substância”,
explica Celso Lafer, professor emérito da Faculdade de Direito da USP e
ex-presidente da FAPESP.
“A função da escola é ensinar às crianças como é o mundo, e não
instruí-las na arte de viver”, afirma um trecho do ensaio em referência
ao movimento Escola Nova, que tem no filósofo pragmatista
norte-americano John Dewey (1859-1952) seu nome mais importante. Essa
vertente educacional ficou conhecida por propor “uma educação para a
vida”. Segundo a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FE-USP), “o texto de Arendt é uma referência
importante pela crítica que faz aos modismos da educação e por apontar
alguns equívocos que estavam em voga, como só valorizar em sala de aula o
que a própria criança criou”.
O ensaio da filósofa alemã apresenta vários desafios. “As reflexões
presentes no ensaio sobre educação são intricadas e pressupõem uma
razoável familiaridade do leitor com a complexa teia conceitual de que
ela se vale em seus escritos políticos”, afirma José Sergio Fonseca de
Carvalho, professor da FE-USP. Investigar tais relações na obra da
autora, e assim entender em maior profundidade seu pensamento sobre
educação, tem sido o objetivo dos estudos do pesquisador há 15 anos. O
mais recente, sua tese de livre-docência “Educação: uma herança sem
testamento” (2013), deve sair em livro até o início de 2017, com o mesmo
título, pela editora Perspectiva. “Meu trabalho não procura apresentar
soluções técnicas, mas pôr em questão a própria razão de ser do processo
educativo”, diz Carvalho, em consonância com a afirmação da filósofa de
que a relação entre crianças e adultos “não pode ficar restrita à
ciência epecífica da pedagogia” porque “diz respeito a todos”.
Ao procurar uma compreensão mais profunda da dicotomia entre os
conceitos de mundo e vida apresentada por Arendt em “A crise na
educação”, o pesquisador encontrou a distinção entre domínio público e
privado em obras como A condição humana (1958) e O que é política? (1955).
No âmbito privado, caberia aos cuidados destinados à criança dar conta
das atividades de sobrevivência e manutenção da vida, enquanto a escola
exerceria a função de imortalizar e superar uma herança recebida do
mundo. “Para Hannah Arendt, é assim que a formação e a experiência
educativas ganham um sentido público, e não no preparo do indivíduo para
a inserção na economia”, explica Carvalho. Segundo a especialista em
psicologia escolar Maria Helena Patto, do Instituto de Psicologia da
USP, a filósofa defende nesse ponto do texto que a tarefa de adaptação à
sociedade que as escolas muitas vezes se atribuem “é antes uma
deformação do que uma formação”.
Arendt rejeitava a ideia de uma educação a serviço de qualquer
finalidade política. “Ela denunciou a instrumentalização da educação
para fins políticos e a ideia de que caberia aos educadores preparar as
crianças para uma ideia predefinida de cidadania”, diz Yara Frateschi,
professora do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp).
“Isso pode sempre ocultar o desejo de tirar das mãos das novas gerações a
possibilidade de criar o novo.”
A crise na educação referida no título do ensaio não tem por
consequência necessária um desastre, como a filósofa adverte no texto.
Crises, escreveu ela, são situações em que se perderam as respostas
aceitas anteriormente, mas sem que a sociedade perceba quais eram as
questões que pediam essas respostas. Dessa forma, diz Carvalho, o “mundo
moderno não se mantém coeso nem pela tradição nem pela autoridade, das
quais a educação, segundo Hannah Arendt, não pode abrir mão”. Segundo a
filósofa, as crises nos forçam a regressar às questões originais. A
complexidade da situação da educação contemporânea, diz ela, é que se
trata de um prolongamento de uma “crise do mundo moderno”. Yara explica
que essa perda da tradição é uma preocupação da filósofa provocada pelo
impacto de seus estudos sobre o totalitarismo nazifascista. “Sua obra é
uma busca incansável dos motivos que teriam levado a humanidade a um
grau de barbárie que todos os recursos teóricos disponíveis são
insuficientes para explicar”, diz a pesquisadora.
O mundo a que se refere a filósofa em seu ensaio não corresponde ao
planeta Terra, nem mesmo à esfera pública por mera contraposição ao
espaço privado. “É antes uma criação do artifício humano, um legado ao
qual os recém-chegados devem ser iniciados por meio da educação”,
explica Carvalho. No processo educacional, essa iniciação levará o
legado público a se tornar um legado de cada criança, “transformando o
que lhe pertence por direito em algo que lhe pertence de fato”.
Um conceito da obra de Arendt articulado a sua concepção da escola é o de amor mundi,
que ela desenvolveu a partir de sua tese de doutorado sobre a ideia de
amor na filosofia de Santo Agostinho (354-430), defendida na
Universidade de Heidelberg (Alemanha) em 1928. Amor ao mundo é o que se
espera dos educadores ao transmitir e se responsabilizar pelo legado
humano. Segundo Carvalho, isso tem três implicações: compartilhar o
apreço pelo esforço da humanidade em imortalizar sua existência mortal,
criar a sensação de pertencimento e recepcionar as crianças a um mundo
“em que se sintam confortáveis, mas não muito”. O “não muito” produziria
um incômodo que seria o motor da ação, até mesmo a ação revolucionária.
Para
que se realize a inclusão da criança em um mundo pelo qual ela ainda
não pode se responsabilizar, é indispensável que os adultos tomem as
rédeas, na escola ou fora dela. “Mesmo que não gostem do mundo como ele
é, os adultos não podem, na tarefa educativa, abrir mão de se
responsabilizar por ele como herança”, afirma Carvalho. “Se não tivermos
enraizamento no passado, que é o que define nossa humanidade, seremos
seres rasos, que vivem apenas no presente, como mais uma peça de uma
engrenagem.”
Sobre essa missão, Arendt afirma que “a educação é o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele”. Tal responsabilidade é necessária porque, de
acordo com a filósofa, o mundo não é das crianças, mas dos adultos. “Ela
argumenta que um grupo de crianças deixadas livres para fazer o que
quiserem cria uma tirania de muitos contra poucos, cujo exemplo claro é a
prática do bullying”, diz Lafer.
Na origem do papel dinâmico da educação na história humana, estaria,
para Fonseca, a noção de natalidade, que Arendt também desenvolveu a
partir de Agostinho e que está presente em A condição humana.
“O significado e a natureza da educação, para Arendt, decorrem do fato
de que o nascer de cada criança representa, simultaneamente, que há um
novo ser no ciclo vital da natureza, mas que há também um ser novo no
mundo dos homens”, diz Fonseca. A simultaneidade pode ser desdobrada, à
luz do pensamento da filósofa, em dois momentos: a do nascimento
biológico e a do nascimento para o mundo, função da escola.
Hannah Arendt propunha uma separação radical entre os domínios da
educação e da política. “Ela sustentava que a educação se inscreve num
âmbito pré-político, por dever salvaguardar os novos de assumir uma
responsabilidade pelo mundo que ainda não podem assumir”, esclarece
Adriano Correia Silva, professor de filosofia da Universidade Federal de
Goiás (UFG). Em consequência, a pensadora afirmava que “é preciso
proteger a criança do mundo e o mundo da criança”. Para isso, é
indispensável que o educador detenha uma autoridade – definida por Lafer
como “mais que um conselho e menos do que um comando” – que só se
alcança por meio do respeito despertado nos alunos pela responsabilidade
que a escola deve abraçar. “A proteção tem de ser retirada
gradualmente”, diz Carvalho. “Isso é o processo educacional.”
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