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ACESSO: 10/12/2015 as 11h:22min
Os números são oficiais. Segundo os resultados da Avaliação Nacional
de Alfabetização (ANA) 2014, anunciados em setembro pelo Ministério da
Educação (MEC), uma em cada cinco crianças do 3º ano do ensino
fundamental das escolas públicas só tem capacidade de ler palavras
isoladas e 56,7% só conseguem localizar uma informação explícita em um
texto longo se ela estiver na primeira linha.
O 3º ano – no qual se encerra o primeiro ciclo do ensino fundamental –
deveria ser aquele em que se completa a alfabetização. Como a meta
frequentemente não corresponde à realidade, foi criado em 2012 o Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), um compromisso dos
governos federal, estaduais e municipais para tentar alcançá-la. Dois
anos antes, também com o intuito de melhorar essas estatísticas,
tornou-se obrigatório o ensino fundamental de nove anos, que acrescentou
uma série ao início do processo de alfabetização.
“Criam-se novas políticas, mas não se prevê como vão funcionar”,
critica Claudemir Belintane, professor da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP). Embora os números de inclusão
educacional tenham atingido quase a totalidade da população em idade
escolar, as deficiências do ensino não permitem comemorações. “Não temos
mais uma escola excludente, mas alunos que ficam excluídos dentro da
própria sala de aula”, prossegue Belintane. Segundo ele, um só professor
em sala de aula quase nunca dá conta da alfabetização de todos os
alunos, que chegam à escola com diferentes graus de capacitação para ler
e escrever. “Assim, acham um padrão mediano, apoiando os alunos que já
têm condições de aprender e deixando de lado os que não têm”, afirma
Belintane. No entanto, as diferenças são naturais em qualquer grupo de
alunos. “É preciso entender que a heterogeneidade não traz
necessariamente alunos problemáticos, mas modos diferentes de entrar no
código escrito a partir da cultura de cada um”, diz o pesquisador.
Entre 2011 e 2014, Belintane esteve à frente do projeto “O desafio de
ensinar a leitura e a escrita no contexto do ensino fundamental de nove
anos”, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes). O objetivo do trabalho foi construir uma proposta de
alfabetização e leitura para o primeiro ciclo. O projeto se desenvolveu
nas Escolas de Aplicação da USP e da Universidade Federal do Pará (UFPA)
e numa escola pública em Pau dos Ferros, esta sob responsabilidade de
pesquisadores da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Ao todo, 326 crianças foram envolvidas no estudo, do qual participaram
alunos de graduação e pós-graduação das três instituições e os próprios
professores das escolas receberam bolsas para atuar na pesquisa.
Uma avaliação realizada pelos pesquisadores – de 12 a 15 em cada
escola – constatou a alfabetização de mais de 90% dos alunos, além de
“um nível alto de leitura e produção textual”. Os bons resultados foram
confirmados pela ANA da escola da USP. Antes do projeto, as notas dessas
escolas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do MEC
eram bem diversas: 7,3 para a paulista, 5,8 para a paraense e 4,9 para a
potiguar. O Ideb ainda não fez uma avaliação posterior.
A prática foi simultaneamente de verificação e intervenção, com um
escopo ambicioso, que incluiu diagnósticos e avaliações contínuas dos
alunos, investigação da formação dos professores e elaboração de uma
política de articulação entre as séries e entre os ciclos. “Enquanto nós
pesquisávamos, também melhorávamos o ensino de um ano para o outro”,
conta Belintane. O primeiro ano, 2011, foi de implantação e organização
na 1ª série, enfrentando certa resistência e o período de adaptação dos
professores. O pesquisador percebeu, da parte dos professores em geral,
boa disposição para receber “uma intervenção muito grande” em suas
rotinas de sala de aula. “O ensino fundamental de nove anos estava
começando a ser implantado e ninguém sabia muito bem o que fazer”, diz.
“Isso nos deu argumento para propor mudanças no programa do ciclo.”
© LÉO RAMOS
Brincadeira de senha, com recombinação de sílabas, antes de entrar na sala de aula…
Contar histórias
A intervenção deu ênfase à oralidade como elemento introdutório
para a alfabetização e ao uso de diversos suportes para ensinar leitura
e escrita, inclusive os eletrônicos. A importância da oralidade vem
sendo pesquisada e defendida por Belintane, que escreveu o livro Oralidade e alfabetização – Uma nova abordagem da alfabetização e do letramento
(Cortez Editora, 2014) baseado em parte em uma pesquisa anterior, feita
com apoio da FAPESP em uma escola estadual da zona oeste da cidade de
São Paulo. Um novo livro sobre o assunto está programado para 2016,
agora com base no banco de dados e nas observações resultantes da
pesquisa mais recente. Além de artigos em revistas, o projeto Desafios,
como ficou conhecido entre os participantes, originou até agora quatro
teses de doutorado e seis dissertações de mestrado, além de um filme
documentário em fase de edição.
As estratégias de uso da oralidade englobaram contação de histórias e
jogos como adivinhas, trava-línguas e parlendas. Essas práticas,
originadas da tradição popular, fazem parte de uma espécie de memória
coletiva, mas costumam passar ao largo das salas de aula. “Para os
professores que não estão habituados a usá-las, eu peço que puxem pela
memória da própria infância”, conta Belintane. De início, mesmo a
contação de histórias deve, no entender do educador, ser feita pelo
professor sem um suporte escrito.
“Uma das constatações que eu trouxe de projetos anteriores é que o
Brasil é um país oral”, diz Belintane. “Os alunos respondem bem quando
trazemos as atividades por via da música, da rima, da métrica ou da
contação de histórias, textos que são trazidos na memória. Não se trata
de conversa cotidiana, que é fragmentária.” Mesmo as crianças que têm
pouca afeição à escola e dão vazão à agitação física na sala de aula
costumam gostar de ouvir histórias e respondem a elas com um sossego do
corpo. Envolver o grupo num círculo de contação de histórias é também um
modo de integrar as crianças que tendem a se isolar.
A ideia de trabalhar com esse tipo de material responde à formação de
uma matriz textual que será necessária na escrita e na leitura, por
corresponder a narrativas. “Se o aluno não tem narrativas na memória,
ele se alfabetiza precariamente”, afirma Belintane. Aos poucos, o
professor vai misturando contação e leitura em voz alta, ou então, numa
fase mais adiantada, narra a história oralmente até o clímax e entrega a
solução da trama por escrito – os que têm dificuldades leem junto com
um colega. “O aluno tem que ler textos de grande extensão”, diz
Belintane. “As avaliações do governo muitas vezes propõem o texto de uma
propaganda, uma tirinha em quadrinhos ou um texto curto. Isso melhora
as estatísticas, mas o aluno que lê de forma lenta ainda não é um
leitor. Diante de um texto grande ele se perde.”
Belintane é crítico da crença da escola construtivista de que as
crianças devem ser expostas a diversos tipos de texto. Segundo ele, nos
anos iniciais da escolarização a imaginação das crianças deve ser
acionada e satisfeita. Belintane concorda com o filósofo espanhol José
Ortega y Gasset (1883-1955) quando, ao criticar o pragmatismo na
educação, disse que as crianças devem ler coisas “inúteis” – isto é, não
necessariamente relacionadas à realidade imediata com que convivem. É
uma postura diferente da defendida pela educadora Magda Becker Soares,
professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita da instituição (Ceale). Para ela, os alunos precisam desde o
início serem expostos à função social da escrita. “As crianças se
alfabetizam para ler textos que circulam no contexto social e para
escrever em eventos em que a escrita é necessária”, diz Magda. “A
alfabetização deve basear-se em textos produzidos em situações reais,
visando a leitores reais.”
© LÉO RAMOS
… palavras a serem decifradas pelas crianças na lousa
Singularidades
Belintane vem observando há tempos o interesse das crianças por
mitos e costuma recorrer a antologias de contos populares, de matriz
indígena, africana ou europeia, como os compilados por Luís da Câmara
Cascudo (1898-1986). “As crianças que entram na nova primeira série têm
apenas 6 anos de idade, mas muitos professores trabalham praticamente
apenas com giz, lousa e elementos de alfabetização, sem estimular sua
imaginação”, diz Belintane. Ele recomenda que os professores dispensem
livros didáticos (sobretudo as cartilhas) e produzam ou procurem
materiais contextualizados em relação aos diagnósticos sobre os alunos
da classe, usando simultaneamente aqueles que têm suporte em papel e
ferramentas contemporâneas, de filmes a tablets e jogos de computador.
Para os envolvidos no projeto coordenado por Belintane, esse esquema
tradicional, centrado no chamado professor regente (aquele que comanda e
se responsabiliza pelas atividades principais da sala de aula), não
consegue manejar a diversidade e as demandas múltiplas da classe. Na
Escola de Aplicação da USP, a professora Natalia Bortolaci – que se
baseou na experiência como bolsista do projeto para fazer sua
dissertação de mestrado em pedagogia, uma proposta de currículo para a
nova 1ª série do ensino fundamental – participou e acompanhou de perto a
elaboração de procedimentos para cada criança da classe. Durante o
projeto, pela presença de mais professores do que os contratados pela
escola, as classes puderam ser reduzidas de 30 para 20 alunos, o que já
facilita uma atenção personalizada. Em cada sala havia dois professores,
um deles para “questões singularizadas”. “Isso deu a possibilidade de
observação e intervenção mais pertinentes no caso dos alunos com maior
resistência a aprender ou que chegam com menos cultura escolar”, conta
Natalia.
O projeto Desafios promoveu diagnósticos com quatro níveis de domínio
de leitura e escrita e classificou as crianças. Segundo Natalia, isso
permitiu que todos os alunos pudessem ser desafiados a aprender mais,
mesmo os que chegam com domínio da leitura e da escrita. Foram
promovidas atividades simultâneas sobre um mesmo tema, mas com graus
diferentes de dificuldade. E, uma vez por semana, o “professor de ciclo”
convidou os que têm mais dificuldade para atividades fora da sala de
aula, com trabalhos a partir da oralidade. Em outros momentos as
atividades misturaram os grupos, com a ideia de que os que sabiam mais
ajudassem os que sabiam menos. Na Escola de Aplicação da UFPA as
experiências foram além, com grupos que reuniram alunos de diferentes
séries. O trabalho com quatro perfis de estudantes continuou na
instituição mesmo depois do fim do projeto. A ideia de separar alunos
por graus de habilidades é vista com cautela por muitos educadores.
“Fazer separações traz para dentro da escola os preconceitos que a
sociedade dissemina sobre os mais fracos socialmente”, diz Leda Tfouni,
professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da USP.
No trabalho de diagnóstico para a 1ª série, os professores do projeto
Desafios elaboraram no início do ano portfólios por aluno, que reúnem
registros de atividades realizadas na pré-escola e, quando possível,
informações obtidas com os pais. Trabalhos semelhantes são realizados
dentro do conceito de “dobradiças” entre as séries e ciclos: no fim e no
início do ano alunos das duas séries seguidas se encontram e conversam.
O trabalho de conhecimento e diálogo com o aluno é constante. Belintane
adotou os conceitos de “escuta” e “transferência” da psicanálise para
trabalhar com os alunos em atividades relacionadas à alfabetização.
Jogos e exercícios são utilizados para tomar um contato mais profundo
com as crianças. “O aluno com dificuldades é muito sensível e é difícil
lidar objetivamente com ele; mas é possível ter alguém dentro da classe
para cuidar disso, sem ter de recorrer a um psicopedagogo externo ao
ambiente escolar”, diz Belintane.
© LÉO RAMOS
Participação nas aulas e aprendizado da escrita: atenção à singularidade e à imaginação dos alunos
Formação
A escuta a esse aluno empresta a ideia de “atenção flutuante”
de Sigmund Freud (1856-1939), segundo a qual é nos detalhes
aparentemente sem importância da fala que uma pessoa se revela mais
profundamente. Espera-se com isso encontrar o “ponto de giro”, a partir
do qual o aluno sai do papel de suposta incapacidade de aprender. Um
exemplo de transferência é o de um aluno muito resistente ao aprendizado
e com uma história pessoal de abandono que, por meio de atividades de
contação de histórias promovidas por uma das pesquisadoras do projeto
Desafios, identificou-se com o personagem Pequeno Polegar (um andarilho
solitário), e esse foi seu ponto de giro.
Desafiando a prática das teorias construtivista e sociointeracionista
– que pregam a exposição do aluno, desde o início do processo de
alfabetização, a textos completos de diversos gêneros –, Belintane
acredita na utilização dos elementos constitutivos das palavras –
sílabas e letras – em combinações e recombinações. Na Escola de
Aplicação da USP, o professor, na entrada da sala de aula, brinca de
“senha” com os alunos. Cada um pega, sem ver, um cartão com duas
palavras (por exemplo: chuchu e vagem) e busca formar outra com uma
sílaba de cada (chuva). Em outra atividade, uma lista na lousa mostra
palavras estranhas que os alunos, acrescentando e tirando letras,
transformam em termos conhecidos.
As deficiências do ensino da alfabetização percebidas durante o
projeto Desafios e nas pesquisas anteriores de Belintane levaram,
inevitavelmente, a uma avaliação da formação do professor. Para ele,
quem alfabetiza precisa ser um “professor leitor”. “A formação dos
professores precisa sair do envolvimento mais ideológico, marcado pela
adesão a correntes, e debruçar-se mais sobre as demandas reais do ensino
brasileiro, sobretudo as da própria escola em que se dá aula”, diz
Belintane. “Falta conhecimento das técnicas de alfabetização e dos
recursos necessários ao domínio do alfabeto.” Leda Tfouni concorda: “De
que adianta um professor com a cabeça cheia de teorias famosas, sem
saber direito o que fazer com isso?”. Belintane acredita que o projeto
Desafios possibilitou que o ensino nos cursos de Pedagogia integrantes
fosse repensado e melhorado nas três universidades envolvidas.