© LÉO RAMOS
Retrato da antropóloga Eunice Durham em sua casa no Butantan, São Paulo
DISPONÍVEL: http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/04/19/eunice-durham-modelos-flexiveis-de-universidade/
ACESSO: 22/04/2016 as 18:18h
A contribuição da antropóloga Eunice Ribeiro Durham, de 83 anos, para
o conhecimento sobre o sistema educacional do Brasil divide-se em duas
searas. No campo acadêmico, ela coordenou o Núcleo de Pesquisas sobre
Ensino Superior (Nupes), da Universidade de São Paulo (USP), um grupo
interdisciplinar que entre 1989 e 2005 ajudou a pautar as discussões
sobre o sistema universitário do país ao produzir estudos comparativos e
reflexões sobre o tema. Já na seara pública, ela teve duas passagens
pelo Ministério da Educação (MEC).
Entre 1990 e 1992, presidiu a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) e foi secretária de Ensino Superior.
E, entre 1995 e 1997, assumiu a Secretaria de Política Educacional, um
órgão de planejamento no qual ampliou o escopo de suas preocupações para
os ensinos fundamental e médio. Não foi um mero caso de pesquisador que
levou sua experiência teórica para o governo. “Existe aquele slogan
‘saber é poder’, mas aprendi que o poder também é saber. No ministério,
tive uma visão global do sistema e das diferentes dinâmicas em que ele
funciona que eu jamais tive da perspectiva das ciências sociais”,
afirma.
Crítica do corporativismo acadêmico e do gigantismo das universidades
públicas, Eunice Durham defende um sistema de educação superior diverso
e flexível, que reúna diferentes tipos de instituições – públicas,
privadas, técnicas e de tamanhos diferentes – capazes de atender a
demandas regionais e de massa por uma boa formação profissional e também
as exigências para a formação de pesquisadores. Professora emérita da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, fez toda a sua
carreira na instituição. Atuou nos departamentos de Ciência Política e
de Antropologia, onde se aposentou como professora titular em 2005.
Atualmente, é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas,
que sucedeu ao Nupes. Na entrevista a seguir, ela relembra sua
trajetória e a gênese de algumas de suas ideias.
Como surgiu seu interesse pela antropologia?
Uma das coisas mais difíceis da minha vida foi escolher que curso eu
devia fazer depois do ensino médio. Tinha interesses múltiplos. Quis
fazer arquitetura, matemática, física, veterinária. E gostava de
antropologia. Meu pai tinha uma pequena biblioteca e um dos livros era
do [Bronislaw] Malinovski. Fiquei encantada com a antropologia.
Malinovski que bem mais tarde seria o tema da sua livre-docência.
Considerado, até hoje, um clássico da antropologia. Fui falar com meu
pai, que era professor da USP, um educador. Ele sugeriu que eu fizesse
ciências sociais porque incluía matemática e estatística e tinha
antropologia. Eu resistia porque não queria ser professora. Ele disse:
“É engano seu. Se você fizer veterinária, o tempo inteiro vai lidar com
animal doente, animal atropelado. Se fosse fazer medicina, também ia
lidar com gente com problemas. Mas ser professora é muito bom. Vai lidar
só com gente jovem, idealista, é muito mais alegre”.
Dar aula era o que os graduados em ciências sociais faziam?
A trajetória era dar aula de sociologia em escolas normais. Mas também
podia lecionar geografia e história. Aí achei que talvez o magistério
fosse uma coisa boa. E entrei em ciências sociais. No curso, o que me
fascinou mais foi antropologia e ciência política. Tive um professor de
ciência política extraordinário, Lourival Gomes Machado. De sociologia
eu não gostava muito. Fui aluna do Florestan Fernandes e era tudo muito
teórico. Quando terminei, fui convidada para trabalhar como
professora-assistente voluntária na antropologia.
Professores voluntários trabalhavam de graça, certo? Durou quanto tempo?
Três anos. Trabalhava com o Egon Schaden, que foi meu orientador e
chefe. Também trabalhei como professora no Instituto Sedes Sapientiae e
lá ganhava um salário. Segui carreira na universidade. Eu era assistente
de antropologia, fiz mestrado e doutorado na área. Foi um tempo
perturbador, pois se deu com a instalação do regime militar. A faculdade
foi invadida, o movimento estudantil se mobilizou em oposição à
ditadura. Fiz mestrado e doutorado quase em seguida nessa época e tive
um filho também.
Sua pesquisa de mestrado foi sobre a imigração italiana. Por que o tema?
Meu mestrado se sobrepôs um pouco ao doutorado. O tema foi, como era
costume na época, escolhido pelo catedrático. Como o estudo da imigração
estrangeira era uma das linhas de pesquisa do catedrático, fui, com
Ruth Cardoso, designada para essa área. Fiz a pesquisa sobre imigrantes
italianos na cidade da minha família no interior de São Paulo,
Descalvado. A pesquisa abrangeu um período grande tendo sido também um
pouco histórica. A antropologia era acusada de não levar em conta a
história e de ser muito centrada num tempo determinado. Para quem
trabalha com índio não tem muito jeito. Índios não têm documentos
históricos, têm lendas. Não é o caso dos imigrantes italianos. Fiz um
levantamento da imigração italiana e mostrei que Descalvado era uma
cidade importante para estudar. E fiz um recenseamento. Descobri que 70%
dos habitantes tinham ao menos dois avós italianos, o que significava
uma verdadeira substituição da população original. Já tinha terminado
quando o Darcy Ribeiro montou uma enorme pesquisa sobre urbanização e as
transformações da sociedade brasileira contemporânea e me convidou a
participar. Achei uma falta de responsabilidade do Darcy porque eu era
recém-formada. O mestrado nem estava escrito ainda. Mas ele era uma
pessoa interessante e sedutora. Me dizia: “Pode deixar. Eu oriento
você”. Jamais fui orientada. Ele me deu a parte da migração
rural-urbana, que se tornaria minha tese de doutorado. Nesse meio-tempo,
veio a invasão da Faculdade de Filosofia. Em 1968, houve ampla cassação
dos professores, especialmente na ciência política e na sociologia.
Daí a senhora foi para a ciência política.
Eu e a Ruth Cardoso. Eu gostava de ciên-cia política, mas minha cultura
nessa disciplina era reduzida. Naquele tempo dávamos aula sobre qualquer
coisa. O titular fazia o programa e mandava a gente dar aula ou fazer
seminários. O jeito era estudar e preparar a aula. Estudei muito a
formação do Estado moderno nessa época. Trabalhando com a Ruth,
começamos a estudar movimentos sociais urbanos. Nosso trabalho seguia
uma tradição na sociologia e na geografia humana da época: queríamos
contribuir para entender o Brasil. A imigração italiana era crucial aqui
em São Paulo. A migração rural-urbana também é para o país inteiro. Os
movimentos sociais urbanos eram algo novo.
Entre os resultados de sua pesquisa, destacava-se o peso da família na imigração. Por quê?
Eu não comecei minhas pesquisas interessada na família. Mas, estudando
os italianos, vi que a família era crucial. Aquela imigração foi
destinada de início para a zona rural e depois houve o processo de
ascensão social que dependeu muito do que eu chamo “acumulação
primitiva”. Era feita por meio do número de filhos, todos trabalhando.
Nas lavouras de café, o pai recolhia tudo e criava um capital inicial
com o qual comprava terra ou levava a família para a cidade e fundava um
negócio. Depois, quando fui estudar a migração rural-urbana, a família
apareceu novamente. O roteiro das entrevistas qualitativas era baseado
na pergunta: como é que o senhor chegou em São Paulo? Como é que teve a
ideia de vir? E vinha sempre a resposta, do tipo: “A gente era muito
pobre, não tinha emprego, e o meu irmão veio, o meu tio veio, então
resolvi vir e fui para a casa deles”. E depois iniciavam o processo de
trazer o resto da família. Organiza-se então o trabalho em torno da
relação entre o espaço geográfico e o espaço social. Eu não tinha jeito
senão assumir que a família era muito importante no Brasil, embora para
os alunos daquela época não fosse um assunto muito interessante.
Por quê?
Em 1968, meu programa era sobre família e parentesco, um tema crucial na
antropologia. Mas os alunos estavam empenhados em fazer a revolução
socialista. Era duro obter a atenção deles. Quando chegou maio, eu
perguntei: “Quem aqui não deu presente de dia das mães no domingo
passado?”. Todo mundo tinha dado. Eu disse: “Estão vendo? Não dá para
estudar só a revolução, tem que saber em que a sociedade está assentada
para mudá-la e a família é importante”. Era preciso convencer os alunos
com alguma esperteza.
Como foi a transição da imigração para o estudo de movimentos sociais?
Antes de ir para a ciência política, eu já havia começado a me
interessar pela questão da política estudantil e universitária. Toda a
luta dos estudantes e professores menos tradicionalistas girava em
função da necessidade de reformar a universidade. Apoiei os estudantes,
mas achava que eles estavam indo por um caminho em que não ia haver
vitória nenhuma, que era o de fazer a revolução socialista. O movimento
ia acabar, como acabou, destruído porque os estudantes não tinham apoio
popular nem apoio político para fazer a revolução. Eles não entendiam
nada de Brasil e muito pouco de história. Foi a época, inclusive, em que
eles inventaram os cursos paritários. Eram os professores com os alunos
que escolhiam o curso a ser dado. Esses cursos eram voluntários. Eu
queria estar junto com os estudantes e me ofereci para fazer.
Em que ano?
Foi mais ou menos em 1967, logo antes da invasão do prédio da rua Maria
Antônia, quando fomos para a Cidade Universitária. Nunca fui a favor da
pedagogia cujo slogan era: professores e alunos aprendem juntos. Não é
verdade. Os alunos não sabem antropologia. Como vão decidir o que
estudar? Essa parte da minha história é engraçada. Estava tentando
escrever o doutorado sobre migração rural-urbana. Quase a totalidade dos
alunos e professores mais jovens era marxista. Argumentei com os alunos
que estávamos vivendo uma grande transformação social, que era a
urbanização, que isso envolvia uma enorme mudança da população e criava
problemas imensos. E, para ter um projeto para o Brasil, precisávamos
entender com quem iríamos lidar. Era uma população tradicional? Tinha
novos valores? Consegui convencer os alunos a estudar isso.
A senhora não se colocava como marxista?
Não, o marxismo não serve muito para a antropologia. Na verdade, a obra A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, está
errada do ponto de vista da antropologia. E entre os povos chamados
“primitivos”, que estudávamos então, não havia luta de classes. Mas
trabalhei bastante com o marxismo. Li muito, porque não dava para
conversar com os alunos e tentar influenciá-los um pouco se não falasse a
linguagem deles. Depois de 1968, nós saímos dos barracões em que
estávamos provisoriamente alojados após a invasão da Maria Antônia e
fomos para um prédio novo. Nesta época fui dar um curso sobre o conceito
de cultura. Todos os alunos se sentiam derrotados, mas ainda eram
ferozmente marxistas. Eu tinha que arrumar um jeito de demonstrar que
conhecia Marx, porque senão eles não iam prestar atenção. Lembrei de um
ensaio do José Arthur Giannotti chamado “O ardil do trabalho”, um
trabalho muito lindo, mas muito difícil, sobre a concepção de trabalho
de Marx. Pedi para os alunos lerem. Da perspectiva dos alunos, era uma
bibliografia legítima, puramente marxista. Foi interessante, porque eles
não conseguiram entender o artigo. Eu nunca daria aquilo para
estudantes do primeiro ano não fosse por essa minha maldade pedagógica.
Dei uma aula sobre o assunto. Aí fui legitimada, porque eu sabia Marx – e
sabia mais do que eles. Aprendi muito com os alunos. Eles sabem
denunciar muita coisa que está errada. Mas são incapazes de propor uma
solução realista.
Com a sua passagem para a ciência política, a senhora se envolveu mais com a universidade?
Com a morte do Vladimir Herzog, em 1975, eu estava voltando da romaria
que fizemos até a catedral da Sé para o culto ecumênico e encontrei
outros colegas que disseram que, após o ato, haveria uma reunião dos
professores na USP. Era preciso tomar uma atitude. Fui a essa primeira
reunião, que criou a Associação dos Docentes da USP, a Adusp. Comecei
então um imenso envolvimento com a política universitária e me dei conta
de que sabia muito pouco sobre a universidade. Éramos contra os
militares, contra a cátedra, a favor do departamento, mas não havia
muita comunicação entre os docentes a não ser para tentar proteger
alunos e colegas. Resolvi estudar. Achei um maravilhoso livro do Simon
Schwartzman, Formação da comunidade científica no Brasil. Conhecia
outros trabalhos sobre a universidade, mas o do Simon era outra coisa.
Não era criar um modelo ideal, mas analisar a dinâmica real da
universidade. Se fazemos um modelo ideal, tudo está sempre errado,
porque ninguém constrói o modelo ideal na prática.
Como evoluiu sua visão de universidade?
A grande mudança inicial do meu pensamento foi o reconhecimento de que a
universidade não pode ser tomada como sinônimo de ensino superior. Este
constitui sempre um sistema diversificado de instituições e a
universidade deve ser analisada nesse contexto. Também sempre tive uma
clara visão de que a excessiva politização da universidade não era uma
coisa boa. O papel da universidade é trabalhar numa linha mais
científica, de progresso do conhecimento. E um conhecimento de certo
tipo, baseado na crítica constante do próprio trabalho. Tratar a
universidade como uma comunidade é um erro. A universidade é uma
organização burocrática baseada na divisão de trabalho. Se não se
entende isso, ficamos trabalhando com ideais de que todos devem
contribuir igualmente. A universidade não pode ser entendida desse
jeito. A pessoa que serve o café tem uma visão de universidade, o
assessor jurídico tem outra visão. E o trabalho do pesquisador é outro
também. Não é a mesma coisa. A universidade é mais como um teatro do que
como uma comunidade. Mas a tradição do Brasil é colocar tudo no mesmo
saco. Vou dar um exemplo: num certo momento, o governador Franco Montoro
[1983-1987] me nomeou representante do governo no Conselho
Universitário da Unicamp. Tinha um problema crucial lá com a música e a
orquestra. Havia grandes músicos, mas não se podia dar um salário
decente porque ninguém tinha doutorado. Era um absurdo. Eu tinha a ideia
de que precisávamos de uma universidade mais flexível e menos
burocrática. A função da burocracia é fazer uma norma para todo mundo,
porque assim é mais fácil governar. Tender à flexibilidade e à
diversidade não é algo que o burocrata tenha em mente. E os nossos
professores acabaram sendo grandes burocratas.
É um exagero exigir que todo professor universitário seja doutor?
Há uma distinção que precisa ser mantida com a área profissional. No
ensino de direito, por exemplo, é preciso ter grandes praticantes dando
aula e não simplesmente alguém com conhecimento teórico. Você não vai
formar pesquisadores, vai formar advogados. Tive grande amizade com um
diretor da Escola Politécnica, o Décio Zagottis, uma pessoa muito
corajosa. Fizemos uma reunião na Adusp sobre tempo integral. Ele queria
dividir o tempo integral em dois: o integralão e o integralinho, com
possibilidade maior de trabalhar fora da Politécnica. Eu argumentei
contra. Na saída, ele veio falar comigo. Disse: “Eunice, sou um
especialista em grandes estruturas. Basicamente, grandes pontes e
grandes prédios. Como vou aprender a fazer isso dentro da universidade?
Não posso fazer pontes aqui para treinar”. Aquele argumento para mim foi
definitivo.
Como resolver isso numa universidade de pesquisa?
Todo o ethos da USP é a pesquisa. E a pesquisa é em grande parte um
trabalho experimental, não um trabalho ligado diretamente com o
exercício de uma profissão. Essa é uma distinção fundamental: deveria
haver carreiras diferentes. A outra é uma distinção entre as ciên-cias
humanas e sociais de um lado e as exatas e a matemática de outro. As
humanas têm outro tipo de conhecimento, que não é exato, mas importante.
Quando eu era aluna, não existia trabalho sobre o Brasil escrito por
brasileiro. O grande salto foi dado pelo Florestan Fernandes e outros
que começaram a estudar o país. Mas a capacidade de previsão nas
ciências sociais é pequena. Meu exemplo favorito é que ninguém previu a
queda do Muro de Berlim. Isso é importante para dar um pouco de modéstia
ao trabalho que fazemos. Gosto das ciências humanas e considero todas
essenciais, mas acho que ficaram ideológicas demais.
Como foi o período em que a senhora trabalhou com o então reitor da USP José Goldemberg?
Foi um período efervescente, entre 1986 e 1990. Durante o longo período
militar e a luta pela reforma, criamos a ilusão de que a universidade
não ia para frente por causa dos militares. E que, tirando os militares,
seria libertada e entraria num período de grande transformação
inovadora. O regime militar caiu e não aconteceu nada. O Goldemberg
acreditava que nós podíamos fazer uma grande transformação. Era inovador
e tinha coragem, um homem dedicado a melhorar a universidade. Ele me
dava processos ou problemas para discutir. Era muito estimulante
trabalhar com ele. Ele não queria a fama pela fama. Queria fazer coisas
importantes.
E o que deu para fazer de importante na USP nessa época?
Muitas coisas. Por exemplo, foi o começo da informatização da USP, sem o
que não seria possível formular uma política razoável para a
instituição. Quando o Goldemberg entrou, praticamente não havia
computadores. Havia um imenso arquivo na reitoria com estantes tão
grandes de processos que tinha um motor para mover a estante para poder
achar alguma coisa. Não havia informações básicas sobre a universidade
como o número de classes, de alunos, de professores.
A divulgação da lista dos docentes e sua produtividade causou uma grande celeuma…
Eu alertei o Goldemberg para não divulgar aquela lista, mas houve um
vazamento. Um primeiro levantamento não pode ser divulgado ipsis
litteris, não pode dar nome às pessoas. É preciso analisar e trabalhar
com as estatísticas. De qualquer forma serviu para levantar a questão da
avaliação e os professores começaram a tomar mais cuidado com sua
produção científica. O Goldemberg era corajoso na oposição aos exageros
do movimento estudantil e do movimento docente. O excesso de greves, as
reivindicações corporativas, os estudantes fazendo invasões na reitoria
sem propostas claras eram coisas contra as quais ele lutou bastante. Eu
também.
O Nupes veio em seguida. Qual foi a sua contribuição principal?
O Nupes foi uma nova forma de fazer pesquisa sobre ensino superior, uma
pesquisa menos ideológica e mais baseada no levantamento e análise de
fatos e informações levando em consideração o que ocorria no resto do
mundo. Nossa primeira pesquisa envolveu cinco países latino-americanos e
pesquisadores de cada um deles. Concluímos que os problemas eram os
mesmos: a carreira, o tempo integral, o grau de diversidade do sistema.
Mas as soluções eram diferentes e se davam em tempos diferentes. Todos
estavam tentando fazer avaliação, todos queriam uma reforma
universitária. Acho que o Nupes fez um bom trabalho. A direção do Simon
Schwartzman foi essencial. Deixamos de falar em universidade para falar
de sistema de ensino superior. Foi organizada essa grande pesquisa sobre
as políticas educacionais na América Latina, para ter uma visão do
Brasil não isolada do que acontecia no resto do mundo. Os grandes temas
daquele período estavam presentes no trabalho de uma comissão, criada
pelo então presidente eleito Tancredo Neves, da qual o Simon foi
relator. Eram os problemas da autonomia, da avaliação, da diversificação
do sistema de ensino. A diversificação foi o tema em que nós fomos mais
constantemente derrotados pela academia.
Por quê?
Havia aquele ethos comunitário, que eu chamo de igualitarismo elitista. A
ideia de que você pudesse ter uma carreira para a engenharia e outra
para os pesquisadores de ciência básica era muito mal vista. Assim
também a ideia de que, em um sistema de ensino superior, é necessário
que haja instituições voltadas para a formação para o mercado de
trabalho, outras só para ensino e outras para ensino/pesquisa, pois não
dá para ter ensino de massa numa universidade que tem como alvo e
objetivo fazer pesquisa. É preciso haver outras instituições para lidar
com a massa de estudantes que é muito heterogênea. Nem todo mundo vai
querer ser pesquisador de física ou de química ou mesmo de educação. Boa
parte dos estudantes querem uma formação que os prepare para o mercado
de trabalho. Critico a ideia de que o ensino na universidade esteja
apenas voltado para formar pesquisadores como nós, isto é, futuros
professores universitários.
Qual é o problema disso na pedagogia?
Na pedagogia o problema é mais grave porque, em vez de formar
professores, formam gerentes de escolas, teóricos ou pesquisadores. O
curso não está voltado para ensinar, mas apenas para pensar sobre o
ensino. As diretrizes curriculares que foram definidas em 2004 são
absolutamente vergonhosas. Em seis ou oito páginas de diretrizes, não se
fala nenhuma vez em séries iniciais do ensino fundamental e sobre o que
o professor deve fazer lá. Apenas a pesquisa é valorizada na formação
dos professores e essa pesquisa em pedagogia de modo geral é ruim. Todos
falam que é indispensável a relação entre ensino e trabalho, mas isso é
apenas um mantra. O MEC chegou ao cúmulo de proibir qualquer disciplina
que envolvesse trabalho real durante o curso. Educação é uma área
profissional. É para formar professor.
A Lei de Diretrizes e Bases discutida nos anos 1990 propunha um caminho diferente, não?
Essa foi feita pelo Darcy Ribeiro e ele entendia de povo. Ele criou a
Escola Normal Superior. São Paulo inteiro estava modificando o sistema
de ensino e criando cursos normais superiores. Durou uns seis anos.
Estava deslanchando quando veio a proposta de diretrizes curriculares de
2004 dizendo que toda formação de professores tem que corresponder nas
diretrizes curriculares ao curso de pedagogia tal como está. Então não
podia mais ter Escola Normal Superior. Como estava na lei, eu reclamei.
Consegui falar com o ministro da Educação e dizer que é um absurdo, mas
não adiantou.
Quais as deficiências dos professores?
Na prática, não sabem alfabetizar. Escrevem mal. Não sabem matemática
básica e não sabem sequer ensinar aritmética. São muito mal formados,
inclusive, já antes, no ensino fundamental. E não há nenhum processo
para reforçar a formação. No meu contato com professores, vi muita gente
dedicada. Mas a formação é precária. Como ensinar a criança com essa
formação? As faculdades, na maioria privadas, atendem à camada mais
pobre nos cursos de formação de professor, a que vem de escolas
públicas, e nosso ensino médio público é muito ruim. Tem alunos com
muito potencial, que são da primeira geração que chega à universidade e
vêm de famílias muito pobres. Chegam à universidade por um caminho longo
e difícil. É preciso compensar as deficiências anteriores, reforçando o
domínio das matérias do primeiro nível do ensino fundamental.
Não tem a ver com salário o fato de a carreira não ser atrativa?
Não vou dizer que salário não seja importante, mas a carreira está
construída de tal modo que é impossível pagar bem. Há tanta vantagem
paralela que fica demasiado caro para o Estado. Há uma média
elevadíssima de faltas por mês. Além disso, há faltas justificadas, que
são pelo menos cinco ou seis por ano. Quando somadas, o professor está
ausente em média o equivalente a um mês de aula, sem contar as greves. A
carreira é mal formulada. O professor passa a ganhar mais por tempo de
serviço ou se obtiver o mestrado e o doutorado. Tudo isso não tem muita
coisa a ver com a competência pedagógica e a dedicação ao ensino. Não
há, a não ser na entrada, nada que valorize propriamente o mérito,
porque não há avaliação posterior dos professores. Isso desvaloriza o
professor. Você tem professores com pouca cultura e, especialmente
agora, depois da questão da informatização, alunos que sabem mais que o
professor. É algo humilhante, um professor tentando achar alguma coisa
no computador e os alunos tirando aquilo de letra.
Queria que falasse um pouco da sua experiência no MEC. O que aprendeu com ela?
Adquiri uma visão de todo o sistema que eu não tinha da perspectiva das
ciências sociais. Tive muito contato com os cientistas, os médicos, os
engenheiros. Talvez o trabalho melhor que eu tenha feito na vida foi
dirigir a Capes. Foi só um ano. Um dos desafios foi a diminuição do
tempo de mestrado. No mundo inteiro, mestrado é uma coisa secundária, um
aperfeiçoamento prático. O mestrado profissional ou profissionalizante
está previsto na legislação da pós-graduação. Mas isso nunca pegou no
Brasil, porque todo mundo começou a pós-graduação fazendo mestrado.
Valorizava-se o mestrado porque era o que se tinha. Mas nosso mestrado é
tão teó-rico e geral quanto o doutorado. Para colocar um pouco o Brasil
dentro da ordem mundial, propusemos diminuir o tempo das bolsas. Foi
terrível. Foi a única vez que a congregação da Faculdade de Filosofia
escreveu uma carta interpelatória dizendo que eu estava interferindo na
autonomia universitária. Foi divertido, porque pedi uma audiência para a
congregação.
Como a senhora respondeu?
Expliquei que não estava interferindo na universidade, mas na duração
das bolsas da Capes. Nada impedia que a universidade, ela própria, desse
mais dois anos de bolsa, se quisesse. As bolsas não são da
universidade. São da Capes. Também na Capes, me orgulho de ter inventado
a então chamada “taxa de bancada”. Não sei como se chama hoje, embora
tenha sido mantida. Quando assumi, os cursos de pós-graduação estavam à
míngua. Todo o dinheiro para a pesquisa do orçamento da Capes tinha sido
cortado. Então inventei a taxa de bancada, porque descobri que a coisa
que não se pode cortar é a bolsa. O valor da bolsa foi acrescido como
taxa de bancada para o curso, para ajudar o departamento a manter o
curso. Podiam usar para o que quisessem menos para pagamento de pessoal.
Houve programas que, quando mandaram a primeira prestação de contas,
incluíram papel higiênico. Foi um escândalo na Capes. Eu dizia: se está
faltando papel higiênico, é normal que comprem, porque não dá para
funcionar sem papel higiênico. Não era muita coisa, mas salvamos muito
programa de pós-graduação. Podiam mandar consertar o microscópio, juntar
diferentes departamentos e comprar um computador ou melhorar o sistema
elétrico para evitar panes, por exemplo.
Nos anos 1990 houve um crescimento do setor privado, não necessariamente com qualidade…
A questão é que as instituições privadas atendem a uma demanda de massa.
Se você não atende à demanda de massa no ensino público, o setor
privado cresce. Não precisou nunca de um estímulo governamental. Uma
avaliação baseada simplesmente na análise dos programas, como se faz
para o reconhecimento dos cursos, não adianta nada. Tudo o que você
exige no papel elas fazem. O problema é o professor, seu regime de
trabalho, como e quanto recebe, sua competência real. Para muitas áreas
do conhecimento, como direito, por exemplo, não é tão importante se têm
doutorado, mas se têm experiência e se os alunos aprendem. Esse é o
problema e ele foi assumido pelo ministro Paulo Renato com o Provão. Era
uma avaliação indicativa, mas como era um exame universal e todos os
alunos tinham que fazer no final do semestre, criou-se um instrumento
para ver qual é o aproveitamento dos estudantes. O Provão teve um efeito
positivo. As instituições de ensino superior passaram a se preocupar
com o resultado do exame e davam aula de reforço para o aluno poder
fazer o exame. Houve um esforço real de melhoria da qualidade do ensino.
Quem tinha boa avaliação fazia anúncios sobre sua classificação e
aumentava o número de alunos enquanto as muito ruins perdiam estudantes.
Como avalia o programa Universidade para Todos, o Prouni?
Não é uma ideia ruim, mas salvou da falência as instituições que estavam
perdendo alunos por causa do Provão. No Prouni, uma instituição privada
aumenta em 10% o número de alunos sem contratar novo professor, nem
mudar as turmas ou o programa, sem aumentar as salas de aula, e tem um
enorme abatimento no custo com isenção de impostos. Acho possível uma
colaboração das instituições governamentais com as particulares. Mas
teria que privilegiar as que dessem um bom ensino. O pior é que não se
sabe quanto custa. Esse foi um dos problemas cruciais do PT na condução
da educação. No MEC, eu mesma coordenei o projeto do Fundef [Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério]. Sabia-se exatamente quanto ia para cada aluno no Brasil
inteiro. O projeto é inteiramente transparente. Já o Fundo que o
substituiu tem diversas fontes e vai desde a pré-escola até o ensino
médio. A distribuição entre esses níveis de ensino é precária. Nunca
descobri como é feito esse cálculo. O Prouni exige pouco da instituição.
O mesmo aconteceu com o programa de crédito educativo. Tem instituições
privadas que sobrevivem à custa disso. Tem 70% de alunos com crédito
educativo. O Estado paga a mensalidade e o aluno fica devendo ao Estado.
A instituição não tem nenhuma obrigação. Nunca houve tantas benesses
para o setor privado