terça-feira, 21 de julho de 2015

O PAPEL DA LINGUAGEM



            Um dos temas de grande interesse da pesquisa em educação em ciências é a formação e o desenvolvimento de conceitos científicos pelos estudantes. A produção de conhecimentos sobre o processo de ensino e aprendizagem em sala de aula tem se apoiado largamente nas contribuições de Vygotsky e Bakhtin, pois esses autores fornecem base teórica que fundamenta as pesquisas que defendem ideias de que os sentidos das palavras não estão expressos em glossários, mas através de seu uso em contextos sociais específicos. Algumas pesquisas não consideram a aquisição de conceitos como meta única da educação em ciências. Ao contrário, entendem que o aprendizado de conceitos em ciências não pode ser dissociado de outras metas curriculares, como: aprender os procedimentos de produção de conhecimento em ciências e aprender sobre a relação ciência-tecnologia-sociedade. Enquanto Vygotsky auxilia na compreensão do do processo de internalização dos conceitos espontâneos e científicos como prática mediada pedagógica e intencionalmente planejada, Bakhtin orienta a atenção para a natureza ideológica dos signos que circulam em contextos sociais específicos. Bakhtin valoriza a fala, a enunciação e afirma sua natureza social, não individual.
            Haja vista que a prática corrente e tradicional no ensino de ciências consiste em apresentar um conjunto de definições, seguidas de alguns exemplos, e uma profusão de exercícios, com poucas variações entre eles, para fixação dos conteúdos apresentados. Nessa perspectiva, o procedimento de ensino restringe-se à apresentação de conteúdos factuais, classificações, fórmulas e nomes ou meras definições de entidades químicas, físicas ou biológicas, tais como: elemento, substância, soluções, corrente elétrica, inércia, gens, gametas etc. A concepção de ensino que orienta essas práticas se assenta na lógica da explicação acabada, sem levar em conta o sujeito que aprende e o processo de significação dos conceitos científicos. Tal lógica se estabelece como um mecanismo de transferência de conhecimentos prontos, cristalizados e sistematizados por meio da apresentação de definições. Desse modo, memorizar uma definição correta não garante a compreensão das muitas relações nela envolvidas. A definição de um conceito é uma síntese, a formalização de certas relações que já estão, de certo modo, compreendidas por parte de quem as formula. É produto de uma compreensão sintética, acabada e formalizada. Mas como se dá a formação e evolução de conceitos científicos pelos estudantes? Para responder a essa questão,recorre-se aos estudos de Vygotsky sobre a construção dos conceitos científicos, e os de Bakhtin no que se refere ao papel dos signos na produção de sentidos. De modo que é possível afirmar que, a aquisição dos conceitos não guarda um fim em si mesma. Um conceito sempre exerce a função de comunicar, assimilar, entender e resolver algum problema e que só a presença de condições externas e o estabelecimento mecânico de de uma ligação entre a palavra e o objeto não são suficientes para a criação de um conceito. Aprendizagem dos conceitos constitui elemento central da educação em ciências. Os conceitos são os instrumentos mediacionais por meio dos quais interpretamos e interagimos com as realidades que nos cercam. Bakhtinianamente falando, agimos e vivemos pela palavra. Por correspondência, pode-se dizer que, em ciências, novos conhecimentos são produzidos, os fenômenos são compreendidos e explicados por meio de uma rede conceitual. O ato de pensar é realizado por conceitos. Em outras palavras, os conceitos são ferramentas que são utilizadas para se pensar o mundo e a si mesmos, para agir no mundo e interagir com ele e com os outros. Por outro lado, essa ação sobre as realidades a serem interpretadas e transformadas leva a rever constantemente os conceitos aprendidos. Assim, os conceitos vão se modificando, tanto em extensão quanto em compreensão, num processo lento e difícil de produção de sentidos e de confronto com os significados socialmente estabelecido. O processo de formação de conceitos científicos envolve a apropriação, pelos estudantes, dos novos modos de falar e pensar o mundo. Baseando-nos na Filosofia da Linguagem de M. Bakhtin (1997b), a compreensão da palavra alheia é resultado de um processo de confronto e interpretação, o que proporciona uma reavaliação, uma modificação e o surgimento de um novo signo na consciência, uma nova palavra interior. Assim, é possível entender a formação de conceitos como trabalho social e semiótico. Sua apropriação resulta de um esforço de relacionar um signo interior qualquer de que se dispõe com a unicidade de outros signos que são apresentados no contexto social de uso e significados. A compreensão dos conceitos depende de, pelo menos, dois sujeitos. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor, ponte lançada entre o eu e os outros. São sentidos que se entrecruzam, complementam, refletem e refratam. Contudo, há que se considerar que a produção de sentidos não pressupõe, necessariamente, a presença física de um outro. Mesmo quando se estar sozinho, carrega-se outros textos, autores, pessoas que fazem parte do universo social de significação do mundo. Portanto, todo processo de formação de conceitos é, essencialmente, dialógico e dependente das estratégias de mediação adotadas. De acordo com MORTIMER a ideia de que aprender ciências implica entrar em um mundo que se apresenta com uma linguagem própria, bem como tomar consciência das diferenças e das relações entre as linguagens da ciência e outras formas de falar e compreender o mundo. Aprender conceitos, nessa perspectiva, é um processo lento, complexo e sempre inacabado, pois os conceitos vão sendo revistos e ampliados. Por exemplo, o conceito de átomo significava, para Dalton, a unidade indivisível. O conceito foi retomado e modificado repetidas vezes na história da química. O átomo deixou de ser indivisível, mas ainda hoje os professores se reportam a ele usando a mesma palavra. Do mesmo modo como os conceitos mudam ao longo da história do pensamento científico, os sentidos que vão sendo construídos acerca deles também mudam. Entende-se por sentidos os modos pessoais de compreender ou se apropriar de um conceito. Entende-se por sentidos os modos pessoais de compreender ou se apropriar de um conceito, enquanto os significados são os sentidos que se estabilizam com o tempo, fruto de uma construção e acordo coletivos. Os sentidos, portanto, remetem aos indivíduos, e os significados, às comunidades científicas. Enquanto as palavras duram, os sentidos mudam. Desse modo, os conceitos não são categorias intrínsecas da mente, nem reflexo da experiência pessoal, mas produtos históricos da atividade mental. Segundo Fontana “Os conceitos têm história. Carregam consigo as marcas e as contradições do momento histórico em que se desenvolveram e consolidaram, os movimentos de reelaboração e de rearticulação no jogo das forças sociais... Marcas que estão impressas na própria palavra. Em algumas produções didáticas, os leitores vão encontrar três possibilidades. Uma delas é a de se fazer uso de um conceito sem a pretensão de formalizá-lo em um dado momento. Esse é o caso do conceito de substância, sem o qual seria impossível entrar no universo da química, mas cuja definição formal ultrapassa as metas da educação em ciências no nível Fundamental. O processo de formação de conceitos remete ao “material que serve de base para sua formação e à palavra através da qual ele surge” . Um conceito além de não existir isolado, se constitui numa rede de outros, como produto de uma elaboração racional da experiência dos sujeitos. Em outras palavras, a crítica que se faz ao ensino de ciências, tal como vem se configurando, não significa que uma definição não deva ser inicialmente apresentada, para, a partir dela, se produzir um sentido novo, mas aos modos como essa mediação é feita. Nesse sentido, o processo de formação de um conceito pode valer-se de uma definição tomada a priori como sendo o próprio material que servirá de base para as interações linguísticas e semiológicas. A medida da generalidade de um conceito se assenta na capacidade dos sujeitos de colocá-lo em um sistema global de inter-relações de sentidos. Resulta de generalizações em níveis diferentes de conceitos. Consiste em organizá-los em um sistema, tendo como critério o grau de generalização, o que está para além da simples memorização de definições isoladas. A produção de sentidos pressupõe, portanto, intertextualidade e um intenso diálogo constituído pela produção de enunciados e pela escuta entre alunos e professores. Para a realização dessa atividade, são feitas várias perguntas e associações com situações da vida. A palavra, diz Vygotsky, não expressa o pensamento, ela o mediatiza: pensa-se com as palavras. Nesse esforço de compartilhar significados com o professor e com os colegas, e reunir diferentes textos produzidos por esses interlocutores ou encontrados nos rótulos de água mineral, o estudante vai se familiarizando com a palavra substância. A intenção é a de que a “palavra do professor” vá, aos poucos, se tornando “palavra própria”. A expectativa é de que o estudante pode ter um nível inicial de compreensão do conceito de substância, ao associá-la a nomes e fórmulas apresentados nos rótulos, e compreender que os materiais ocorrem naturalmente misturados. Outros materiais, como o leite, o sangue, o suco, por exemplo, não têm fórmulas. São misturas de substâncias. Retomando Bakhtin  “Ver uma coisa, tomar consciência dela pela primeira vez, significa estabelecer uma relação dialógica com a coisa: ela não existe mais só em si e para si, mas para algum outro (já há uma relação entre duas consciências).” Ao longo da atividade, os professores acompanham, com atenção, os sentidos que os alunos atribuem às palavras: material, substância, mistura, composto, elementos, entre outras. Os estudantes empregam esses termos com desenvoltura, embora os sentidos atribuídos por eles a essas palavras não correspondam, muitas vezes, ao significado que tais termos têm na ciência. As duas consciências, de que fala Bakhtin na citação acima, referem-se aos horizontes conceituais do professor e do aluno. A falta de correspondência entre esses horizontes não impede que os conceitos possam ser utilizados pelos alunos e, desse modo, progressivamente compreendidos e apropriados por eles. O entendimento da complexidade do processo de formação de conceitos exige dos professores, paciência, compromisso e atento acompanhamento. Essa perspectiva dissolve as ilusões de uma aprendizagem fácil e imediata. A compreensão dos conceitos científicos envolve o encontro destes conceitos com o horizonte conceitual dos estudantes. Esse encontro, algumas vezes, é suave e harmonioso, em outras, permeado por tensões e conflitos. Apropriar-se do conceito científico, nesse sentido, implica relacionar esse conceito com outros, científicos ou não. Na aprendizagem de conceitos científicos faz-se necessário o reconhecimento de suas particularidades e, em circunstâncias apropriadas, utilizá-los corretamente. Para Bakhtin, a compreensão demanda uma atitude crítica e ativa frente à palavra alheia, um povoamento dessa palavra alheia com suas próprias contrapalavras:Na linguagem da vida real, todo ato concreto de compreensão é ativo:o sujeito assimila o mundo a ser compreendido em seu próprio sistema conceitual constituído por objetos específicos e por expressões emocionais, e é indissoluvelmente imerso na resposta, com uma concordância ou discordância motivada. De algum modo, a resposta predomina como princípio ativo: ela cria a base para a compreensão, para uma compreensão ativa e engajada. Compreensão e resposta são dialeticamente imbricadas e mutuamente condicionadas cada uma a outra, uma é impossível sem a outra. Cientes dessa complexidade, pesquisadores acreditam que o currículo de ciências deve eleger conceitos estruturadores do pensamento nos diversos campos do conhecimento científico para promover a formação e o desenvolvimento dos mesmos, nos estudantes. Tal concepção de currículo se apoia na ideia de multiplicidade de sentidos de Bakhtin. Em lugar de partir de uma definição, de poucos exemplos e muitos exercícios, a estratégia adotada dos materiais deve se consistir em apresentar diversos contextos e situações problematizadoras, que permitam, ao estudante, ver essas ideias em funcionamento. Na medida em que se usa uma mesma ideia em situações variadas, o estudante tem a oportunidade de estabelecer maior número de relações entre os sentidos em jogo, o que favorece as condições de apropriação e de consolidação dos conceitos. Como Tolstoi observou, a nova palavra, uma vez utilizada pelo estudante, em contextos apropriados, ela lhe pertence ou, nos dizeres de Bakhtin, torna-se palavra própria. Ensinar ciências implica introduzir os estudantes numa cultura que, inicialmente, não lhes pertence, e dar condições para que eles se apropriem dela e a relacionem com outras dimensões de sua cultura e com a realidade concreta da vida, em suas múltiplas dimensões. Mas, se fizer a opção por não introduzir os conceitos estruturadores das ciências por meio de definições, como então proceder? Que artifícios e estratégias usar para se introduzirem as ideias das ciências e disponibilizá-las para que sejam trabalhadas pelos estudantes? Para Driver et al., “uma maneira de introduzir os estudantes em uma comunidade de conhecimento é através do discurso no contexto de tarefas relevantes.”  Pesquisadores defendem que a estratégia de estranhamento e a narrativa podem trazer bons resultados, uma vez que a primeira faz perguntas que evocam no aluno o desejo de uma resposta. Enquanto a narrativa, reflete uma concepção que tem o compromisso de enredar o estudante numa história científica, de trazê-lo para o centro da cena. É o gênero que se usa para conhecer. O homem aprende narrado, muito embora os textos científicos se orientem por outro gênero discursivo no qual os sujeitos não têm lugar.
De modo mais amplo, acredita-se que os sentidos das palavras são atribuídos quando estas são relacionadas com outras palavras, significados e coisas. Ainda segundo Bakhtin e em relatos de experiências pedagógicas, é possível perceber que a tentativa de preencher vazios conceituais com palavras e definições alheias parece ser uma ilusão. Isso porque, ao tentar  preencher um vazio, reportam-se a outros conceitos e outras ideias, que vão se tornando mais e mais complexos. Consequentemente, vão se criando novos vazios, outros não-ditos ou ditos não compreendidos pelos sujeitos, prática que tem sido corrente em situações de ensino. Veja o caso do conceito de matéria a título de exemplo. Matéria é tudo que tem massa e ocupa lugar no espaço. Massa é quantidade de matéria. Quantidade é uma medida de coisas. Coisas materiais são aquelas que podemos pegar e carregar. Não se pode “pegar energia”, no sentido tátil do verbo pegar. Então, a princípio, energia não é matéria. Do ponto de vista da física clássica, energia é uma propriedade termodinâmica de estado do sistema, que pode alterar de valor, durante uma mudança de estado, através da transferência de matéria e/ou trabalho e/ou calor e/ou radiação eletromagnética entre o sistema e as suas vizinhanças. Os sentidos das palavras são múltiplos, como são muitos os sujeitos. As palavras não têm um sentido em si mesmas, mas somente quando funcionam articuladas a um conjunto de ideias que queremos expressar. O sentido de uma palavra ou expressão depende, pois, do sentido de palavras e expressões anteriores, ao mesmo tempo em que antecipa o sentido das palavras e expressões que ainda surgirão no fluxo das interações interlocutivas. As estratégias utilizadas para o desenvolvimento de conceitos são variadas, mas não devem ser escolhidas ao acaso. A formação de conceitos é um processo lento, difícil e essencialmente inconcluso. Isso aponta para a necessidade de uma abordagem curricular recursiva com idas e vindas, aprofundamentos, variação de contextos e complexificação de situações a serem abordadas e relacionadas. Aponta, além disso, para a necessidade de se fazer escolhas sobre o que ensinar e sobre as ênfases a serem dadas. Nesse sentido, é importante estabelecer metas para a aprendizagem, ao longo dos níveis de ensino, de “modelos poderosos” que estruturam o pensamento científico nos diferentes campos disciplinares pelo uso funcional de sua linguagem em contextos de relevância para os estudantes. Essa perspectiva se contrapõe ao uso precoce e fechado de definições. A compreensão é, assim, um trabalho verbal de construção de sentidos, da apropriação do conceito. Emerge nas interações interlocutivas, no confronto entre falantes, no ato mesmo da linguagem. O termo apropriação está sendo usado aqui deliberadamente para marcar a posse do sujeito sobre algo que antes não lhe pertencia porque, externo a ele, só guardava o sentido atribuído pelo enunciador, quer seja este o livro didático ou o professor. Esse tipo de abordagem elimina um impasse nos currículos de ciências. Muitos conceitos centrais nas ciências apresentam definições complexas e difíceis de serem introduzidas e assimiladas pelos estudantes no Ensino Fundamental. Isso implica a necessidade de se introduzir essa linguagem na relação com outras linguagens sociais, indicando suas diferenças e particularidades. Nessa concepção, é fundamental que, nas aulas de ciências, as crianças e jovens tenham amplas e variadas oportunidades de utilizarem as linguagens da ciência. Parafraseando Oliveira (1999), pode-se depurar três ‘lições’ dos exemplos relatados neste artigo sobre o processo de formação de conceitos. A primeira delas é a de que as definições, em geral, constituem uma etapa tardia no desenvolvimento de conceitos e, em alguns casos, nem chegam a se configurarem como tal. A segunda é a de que o desenvolvimento de conceitos envolve o reconhecimento, pelos estudantes, dos contextos que demandam seu uso para o entendimento do mundo. A terceira lição é a de que o processo de formação de conceitos científicos consiste no desenvolvimento de formas específicas de falar sobre e com o mundo, modos de dizer que carregam significados e relações com outros conceitos. Ao se considerar o conceito como um meio importante de apropriação do conhecimento científico, valoriza-se a formação de conceitos não só como ferramenta para compreender o mundo, mas como processo que modifica de maneira substantiva o conteúdo do pensamento humano e que potencializa o desenvolvimento das funções mentais superiores. Há a importância de se estabelecerem contextos de vivência em que os conceitos científicos possam ser utilizados de maneira adequada como instrumento para compreensão de situações-problema. O modo de perguntar guarda propósitos diferentes, do mesmo modo que gera atitudes de resposta diferentes nos sujeitos aos quais se dirige o texto.

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