terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

ENSINAR A QUEM NÃO QUER.....


DISPONÍVEL: http://terrear.blogspot.com.br/2007/07/ensinar-quem-no-quer.html#!/2007/07/ensinar-quem-no-quer.html
ACESSO: 10/02/2015 ÀS 15:07h.

Uma das chamadas obras de misericórdia alterou o clássico enunciado de “ensinar a quem não sabe” para outro mais exacto e mais verdadeiro: “ensinar a quem não quer”. De facto, nas escolas de ensino básico e secundário surgem agora alunos e alunas que não querem aprender e que não estão dispostos a que haja quem o faça. É de Richard Whately esta perturbadora metáfora. “Ensinar quem não tem vontade de aprender é semear um campo sem o lavrar”.

A questão é complicada, porque se já se torna difícil ensinar quem não sabe, muito mais difícil é fazer com que se disponha a aprender quem, de nenhum modo, está disposto a fazê-lo. Como se pode obrigar a correr quem não se quer mexer? Com promessas? À força? O problema é que a ameaça pode fazer com que alguém movimente o seu corpo, mas não que modifique a sua atitude ou accione a sua vontade. Para que se obtenha uma aprendizagem significativa é necessário que ocorram duas condições: a primeira é que o conhecimento acrescentado tenha coerência interna (que tenha sentido em si mesmo) e que se venha ligar com os conhecimentos prévios de quem aprende. A segunda condição é que exista uma disposição para a aprendizagem, vontade e desejo de saber.

Como ensinar quem não quer aprender? Como conseguir que alguém aprenda num grupo onde várias pessoas empregam todo o seu esforço em impedir que se gere um ambiente de aprendizagem?
A questão é exactamente esta. Não é de estranhar que alguns professores, habituados a trabalhar com alunos do secundário, se mostrem confusos e abatidos. Há que compreender a angústia e desolação de quem dá a sua vida e o seu esforço por uma causa que não é compreendida. Ou, o que ainda é pior, que é menosprezada e ridicularizada. Alguns destes profissionais atribuem a situação à implementação duma lei que parece ser responsável pelos seus males.

Antes de mais, quero dizer que o ter-se alcançado num país a plena escolarização até aos 16 anos é uma vitória admirável e incrível. Uma vitória que tem a ver com o progresso, com os avanços democráticos, com a superação de discriminações seculares, com os valores de uma sociedade mais justa e com uma lógica avassaladora, se pensarmos que a idade para começar a trabalhar é aos 16 anos. Que poderão fazer os jovens se já não puderem estar na escola nem puderem ainda começar a trabalhar? Agora já podem – devem – ser escolarizados não apenas os filhos dos que têm cultura e dinheiro, mas também os filhos e filhas de todas as famílias. Agora podem – devem – ter acesso aos bens culturais não apenas os que sabem apreciá-la e têm dinheiro para a pagar, mas todos os cidadãos, seja qual for a sua condição económica e cultural. Agora podem – devem – estudar não apenas os filhos varões, mas também as filhas antes destinadas às tarefas domésticas. É um progresso sem precedentes que, provavelmente, poderemos apreciar em toda a sua dimensão num futuro mais ou menos próximo.

Como é lógico (e inevitável), ao escolarizar todos os jovens dos 14 aos 16 anos, iremos deparar na escola com todos os seus problemas. Temos de os encarar de frente. É triste ouvir que se trata duma situação insuportável. É como se, num hospital, surgissem queixas pelo facto dos médicos agora terem de atender toda a população, quando antes apenas tinham de atender uma parte dessa população, precisamente a mais saudável. Porventura seria preferível, para evitar problemas aos médicos, abandonar à sua sorte aqueles a quem a história já castigara, sem culpa alguma da sua parte?

Quando um bom profissional depara com uma situação imprevista, sente-se perante um desafio e não perante uma condenação. Imaginemos (para voltar à metáfora da saúde) que, num país, surge uma nova doença totalmente desconhecida. Penso que um bom médico encarará essa situação como um tremendo desafio, sentirá um enorme desejo de investigar o caso, e um renovado empenho pela sua profissão. O mau profissional há-de lamentar-se da nova situação e argumentará que nunca lhe explicaram nada sobre o assunto na Faculdade. A profissão surgir-lhe-á como uma desgraça, uma maldição.

A escola tem de encarar as suas funções sob novas perspectivas, tem de rever os seus pontos de vista face aos novos desafios e exigências. Há que reflectir e actuar com rapidez e eficácia. Uma instituição obsoleta não pode dar resposta a situações de grande exigência. Leiam, à guisa de divertimento, a descrição de como eram as escolas destinadas a formar súbditos em vez de cidadãos, na obra de Juan Eslava Galán “Escola e Prisões de Vicentito Gonzáles”. Uma escola opressora não pode formar pessoas livres e entusiastas.

Devo interpelar, também, o legislador que promulga a lei e impõe a sua aplicação. Para lhe dizer que se torna imprescindível disponibilizar os meios necessários para a implantar duma forma eficaz. Não pode dizer se quiser ser responsável: Eu já fiz o que me competia, elaborar e promulgar a lei. Onde estão os meios para a aplicar duma forma eficaz? A este propósito fazem falta, em meu entender, três condições que não estão a ser cumpridas:
A primeira: que os profissionais tenham uma adequada formação, de modo a poderem fazer frente às novas situações. Uma coisa é saber matemática e outra, muito diferente, ser capaz de a ensinar. E actualmente, como verificamos, há algo mais difícil ainda: ser capaz de despertar o desejo de a aprender. É vergonhoso verificar que a formação específica dos profissionais do ensino, destinados à realização duma actividade tão complexa e tão importante, continue a ser tão curta e tão ridícula. É necessário um saber específico para a realização duma actividade menosprezada pelos políticos e pela sociedade. Quem é capaz de ensinar a quem não quer aprender? Escreve William A. Ward: “O professor medíocre, diz. O bom professor, explica. O professor excelente, demonstra. O grande professor, inspira”. Será que se aprende a motivar, a inspirar por artes mágicas?

A segunda, tem a ver com a organização das escolas. Há que dar às escolas mais autonomia, de forma a poderem procurar e aplicar soluções criativas e adaptadas às situações: avançar com os Módulos de Garantia Social, organizar actividades específicas, levar a cabo experiências atractivas, facilitar um currículo que prepare para a vida profissional (sem a exigência de qualquer título académico) a quem queira ter acesso à Formação Profissional de Grau Médio... Disse Ranjard, com compreensível ironia, que os professores têm muita autonomia para realizar o seu trabalho nas escolas: a mesma que tem um condutor, num terrível engarrafamento de trânsito, de pôr no leitor de cassetes do seu carro a música das sua preferência.

A terceira é tão elementar que envergonha ter de a apresentar e exigir. Para se poder aplicar uma lei assim tão ambiciosa terá de haver meios e recursos abundantes. Não se pode fazer mais nem melhor com os magros recursos de sempre. É muito difícil fazer um ensino diversificado em turmas com 30 alunos. Alguém imagina o que poderia fazer um médico com 30 pacientes a quem tivesse de diagnosticar e receitar em conjunto? Há falta de professores, de especialistas, de meios económicos, de espaços, de tempo...
Todos, absolutamente todos, devemos apoiar este progresso nos direitos das pessoas que é o alargamento da escolaridade: os políticos com a sua coerência e autenticidade, os cidadãos com o seu empenho na educação e os profissionais com a generosidade, o entusiasmo e o esforço partilhado."

in Miguel Santos Guerra, No coração da escola, ob. cit

Nenhum comentário:

Postar um comentário